A Barraca é uma ofensa à dignidade humana
As palavras são do padre Paulo Vaz Borges, com duas passagens já pelo Bairro da Boa Esperança, em Sal-Rei, na Boa Vista. O turismo começou a atrair pessoas para a ilha das dunas, gente à procura de trabalho que devido aos baixos ordenados e à falta de casas começou a construir a sua própria habitação. O que começou por ser duas filas de barracas transformou-se, com os anos, num bairro onde vivem cerca de quatro mil pessoas.
O bairro da Boa Esperança, conhecido por Barraca, numa das entradas de Sal-Rei, é um labirinto de construções semi-acabadas, pocilgas, lixo, pedaços de plástico e ferros. Há famílias de cinco, seis, sete, oito pessoas a viver em espaços que variam entre os dez metros quadrados e os quinze metros quadrados. Para se ter uma ideia, dez metros quadrados equivalem a cerca de dois passos por outros cinco passos.
O cinzento, o castanho e o laranja escuro são as cores dominantes. O cinzento dos blocos amontoados que servem de casa. O castanho dos caminhos de terra. O laranja escuro dos metais enferrujados. Quando marquei a entrevista com o padre Paulo Vaz ele disse-me para aparecer na igreja do bairro. Percebi depois que era um desafio. Ir conhecer a realidade da Boa Esperança.
Para chegar ao bairro é preciso percorrer um descampado. Ao longe vê-se o bairro feito de casas empilhadas. Ouvem-se os porcos, que circulam livremente pelas ruelas e cheira a lixo, que está empilhado em vários oásis feitos de plástico que surgem em diversos pontos do bairro.
Na outrora pacata Boa Vista, ilha onde todos se conheciam, começaram a ser noticiados crimes. Principalmente assaltos. O bairro é considerado o foco desses delitos. Mas, a verdade é que dentro da Barraca não há essa sensação de ameaça. Pelo contrário, as pessoas são educadas, cumprimentam o estranho que lá entra e chegam mesmo a conduzi-lo pelo emaranhado de ruas e casas todas iguais.
João Baptista tem um pequeno negócio dentro da Barraca, um café com um balcão aca-nhado, meia dúzia de bancos e uma mesa de matraquilhos no exterior. O principal problema, diz, é a falta. Falta de água, falta de luz, falta de esgotos, falta de casas de banho. "Nunca ninguém resolve nada. Estamos abandonados", lamenta-se o jovem, com pouco mais de vinte anos.
João Baptista é só um exemplo. Outros habitantes do bairro contam a mesma história. Querem luz, querem água, querem casas bem construídas, querem recolha de lixo. Tudo o resto, dizem, já têm: igreja, escola, actividade com as crianças, paz dentro da comunidade, seja qual for a nacionalidade.
Centro Educativo
O Centro Educativo da Boa Esperança fica mesmo no centro do bairro. É um edifício novo, pintado em tons amarelos e verdes que contrastam com o cinzentismo que o rodeia. É lá que funciona a igreja, a escola e o jardim-de-infância. As portas do templo estão abertas. Três arcadas e duas colunas sustentam o tecto. Do lado direito, a imagem de Nossa Senhora da Boa Esperança, padroeira do bairro.
Na sala, sete filas de bancos corridos de cada lado. Em cada parede, imagens talhadas em madeira contam vários episódios da vida de Cristo. Enquanto aguardam o início da missa, um coro, formado por fiéis de várias idades, entoa salmos religiosos. O ambiente é informal, crianças tocam um tambor sem serem recriminadas. De vez em quando, uma freira faz um ‘shiu' sorridente.
Falta de espaço e promiscuidade
O padre Paulo Vaz Borges chegou ao Bairro em Fevereiro de 2004. Na altura, existiam apenas duas filas de barracas em frente à cisterna da água. Todo o espaço agora ocupado pelas construções era uma montanha de dunas. Atrás do bairro estavam os chiqueiros. Depois de três anos em Roma, o pároco regressa em 2007, "e quando voltei, para meu espanto, as barracas tinham crescido até onde estão agora".
O padre Paulo Vaz conhece a realidade da Boa Esperança como poucos. Uma das preo-cupações principais é o convívio das famílias num espaço reduzidíssimo, onde "convivem mãe, pai e dois, três filhos, todos juntos. E outras com muito mais gente. Isso é muito grave, porque as pessoas não têm um espaço onde viver nem conviver. A mulher e o marido precisam do seu espaço. As crianças precisam do seu espaço".
Toda essa promiscuidade, segundo o sacerdote, dá origem a duas coisas que não são "nada boas"; primeiro, provoca a violência entre os casais, "porque quando discutem, não têm espaço para se retirar, deixar passar a raiva, portanto batem-se entre si"; o outro problema são os filhos, "que vêem aquilo que não deviam ver. Há uma alta promiscuidade, por causa da falta de privacidade".
É preciso, diz o clérigo, que as pessoas "que vivem cá" tenham o seu espaço. "Tenham direito a um espaço para viver, para construir uma casa digna que permita essa vida em comum".
Em cada casa do bairro há uma estrutura familiar. Em cada barraca vivem pai, mãe e filhos. Quando os filhos se emancipam, não ficam dentro da barraca. Constroem mais uma casa ao lado, ou por cima, da habitação dos pais.
É assim que as barracas se vão estendendo. As famílias vão crescendo e o bairro acompanha esse ritmo.
"A gente que veio para cá", explica o padre Vaz Borges, "foram pessoas que vieram tra-balhar. E contribuíram enormemente para o desenvolvimento da Boa Vista. Mas, ao mesmo tempo, criou-se um grande constrangimento ao poder local da ilha. Esse é um dos preços a pagar pelo desenvolvimento".
Centro não consegue receber todas as crianças
A construção do centro e da igreja, veio, segundo o pároco, promover uma certa vitalidade assim como aumentar a auto-estima das pessoas que vivem no bairro da Boa Esperança, "que, de maneira geral, não tinham uma segurança. Viviam incertas". Agora, no bairro, já se respira um ar de confiança. "As pessoas começam a perceber que merecem ser dignificados".
A construção da igreja começou a 26 de Janeiro de 2009. A 26 de Janeiro de 2010, todo o bloco central já estava construído. Em Março de 2010, começou a ser construído o jar-dim infantil, que ficou pronto em 2011.
Neste momento, 118 crianças frequentam a escola primária e 108 estão no jardim infantil.Mesmo com o centro, um dos grandes problemas que continua a sentir-se na Barraca é o número elevado de crianças na rua. Para já, a escola e o jardim-de-infância são insufi-cientes para responder a todas as necessidades. "Não atendemos a todas as crianças, nem temos espaço para isso", refere o padre Paulo Vaz, "recolhemos as crianças em situação mais vulnerável, crianças em situações de risco, alguns órfãos, mas também crianças de pais que trabalham nos hotéis". Estes pais, que trabalham, também contribuem com um montante mensal de dois mil escudos "uma forma de solidariedade para com aqueles que não podem pagar". Mas, mais do que solidariedade, é também uma forma de responsabilizar pais e mães pela educação dos seus filhos. "Nós ajudamos à promoção humana. Queremos promover as pessoas do bairro, estimulá-las, dar-lhes amor e carinho, mas, queremos também que eles tenham uma parte activa no seu próprio destino. É isso que queremos fazer aqui".
Esse "arregaçar de mangas contra o destino" começou já com a construção do próprio Centro Educativa e da igreja, obras que tiveram a ajuda das pessoas do bairro. "Foram muito voluntariosos na construção da igreja, do centro e do jardim-de-infância. Pagámos também muito, mas sem a ajuda do bairro, teríamos muito mais dificuldade. É bom que as pessoas se mentalizem que o padre, quando sai daqui, não leva nada, deixa tudo. Está ao serviço deles e da igreja".
Sonhos e reivindicações
No bairro, segundo as contas do sacerdote, vive cerca de 60 por cento da população da Boa Vista. Os últimos números oficiais são de um estudo feito pela Afrosondagem em 2010. Nesse documento, são referidos dois mil e oitocentos moradores. 37 por cento tinham acesso à electricidade, abastecida a alto custo pelos próprios moradores, através de geradores de energia. Não tinham água ao domicílio, nem rede de esgoto ou sistema de recolha de lixo. Em relação à organização familiar, era referenciado que "quase todas as casas são familiares e estruturadas". Ainda segundo o estudo, o emprego era precário e os beneficiários da segurança social estavam muito abaixo da média nacional. Entretanto, passaram-se dois anos, e hoje na Boa Esperança convivem treze nacionalida-des diferentes.
Aos ouvidos do padre Paulo Vaz, chegam diariamente os sonhos e as reivindicações dos seus habitantes. "O que mais desejam é ter uma casa. Um lugar onde viver com mais dignidade. No fundo, é isso que pedem, uma casa digna para educarem os seus filhos e para se integrarem totalmente nos costumes da Boa Vista. Para se integrarem totalmente na nossa sociedade".
Uma casa digna, uma família estruturada, educação e tirar os filhos da rua, chega uma mão e ainda sobra um dedo para perceber os desejos dos habitantes da Barraca. "Os fi-lhos não têm espaço dentro de casa. Não têm televisão. Não têm luz. Não têm saneamento. Há lixo por todos os lados, porque faltam contentores", vai enumerando o sacerdote. Contentores são quatro, fora do bairro, e quando estão cheios passam-se dias e dias para ser recolhidos. Mesmo assim, o cenário é hoje melhor do que no passado por-que houve um trabalho forte de sensibilização das pessoas. "Ensinámos que não devem deixar lixo à porta, nem perto das casas dos vizinhos. Que não devem atirar as garrafas. Mas é um trabalho lento. Exige muito tempo. Mudar a mentalidade é possível, mas é o que mais custa mudar nos seres humanos".
O papel das autoridades
O apoio das autoridades é reduzido. O padre Paulo Vaz lembra-se que a autarquia trouxe jogos para as crianças, "nada mais". "Admito que cada um só dá o que tem e o que pode e não podemos exigir à autarquia que nos ajude. Mas, se a câmara vir que estamos a fazer um trabalho importante, algum dia nos há-de introduzir no seu programa de ajuda".
"Precisamos da ajuda de todos para fazer o trabalho que perseguimos, principalmente a educação, a dos grandes e a dos pequenos. A educação do homem, em todas as suas dimensões. Não queremos só trazer conceitos de conhecimento, queremos introduzir educação integral nas crianças e nos adultos. Para que haja uma educação saudável".
Para o sacerdote, os apoios não devem vir só dos organismos públicos, "os privados que nos ajudem a ajudar, porque não procuramos nenhuma glória. Só queremos assegurar o futuro das crianças, porque serão os homens de amanhã".
Daí o desafio que deixa, "venham cá. Vejam o que estamos a fazer. Vejam o nível de implicação que estamos a ter, todos os que trabalhamos cá. Continuem a ter em conta este bairro e as pessoas que cá vivem. Não nos virem as costas".
A segurança
Há um tema que tira o padre Paulo Vaz do sério, quando se afirma que a Barraca é insegura e fonte de todos os crimes na Boa Vista. "Dizer isso é completamente falso. Há muitos guias de hotéis que dizem aos turistas para não passarem cá, mas isso é falso. Nunca nenhum turista foi agredido no bairro. Isso é falso e contribui para a descriminação".
"Durante todo o tempo que cá estive e estou, nunca assisti a agressões a turistas. São agredidos sim quando vão sozinhos à costa da praia da Boa Esperança. São agredidos quando se aventuram para locais escondidos. Aqui, as discussões são entre eles, as agressões são entre eles, nunca contra turistas ou contra pessoas que vêm de fora. Nem as pessoas da Boa Vista são agredidas aqui. E são tantas as que vêm aqui comer, beber ou dançar. É preciso coerência com o que se diz, para não desacreditar este bairro onde é feito tanto esforço para os reabilitar".
"Devolvam-nos a dignidade"
Reabilitar e devolver a dignidade aos seres humanos que habitam na Barraca - são duas as palavras mais ouvidas do sacerdote do bairro. "É uma ofensa que as pessoas tenham de viver assim. Isto indigna-me, provoca-me dor, para já não dizer que sinto raiva. Porque penso que não é certo".
"Não digo que a câmara ou o governo têm de fazer casas para dar às pessoas. O que eu digo é que não se pode negar o direito de ter um terreno digno para construir. O poder local deve ter em conta tudo isto. Quando as pessoas vão à autarquia pedir a venda de um terreno, se for possível facilitar a burocracia, façam-no para que as pessoas consigam as suas casas. É importante que tenhamos sensibilidade para evitar situações destas em Cabo Verde. Eu nunca tinha visto isto. Fiquei espantado quando vi as barracas em Cabo Verde".
A Câmara da Boa Vista fez um projecto já em 2009 que previa a reabilitação de casas, arruamentos, rede de água, esgoto e electrificação. A intervenção não avançou porque ainda não se conhecia a posição oficial do Governo. O Primeiro-Ministro chegou a falar em erradicação. Nesta altura, volta a apostar-se na reabilitação.
O que o padre Paulo Vaz pede é uma sensibilidade maior por parte das autoridades locais e centrais. Que a aposta no turismo seja acompanhada por uma evolução concreta. "Com o projecto Casa para Todos [Em Janeiro, a Ministra do Ordenamento do Território lançou a primeira pedra das 170 habitações que o projecto vai construir na Boa Vista] e a promessa de reestruturação do bairro, penso que vamos no caminho certo. Eu acredito, porque o homem tem de acreditar. O governo, em parceria com a câmara, prometeu reestruturar o bairro. Espero que isso se concretize. O que desejo, e eles também, é dignidade. Não há esperança para este lugar enquanto forem considerados ilegais. Tudo isso causa incerteza nas pessoas. Mas penso que o governo e a câmara dizem que será possível mudar, por isso acredito no que eles dizem. Espero que sejam palavras de verdade. Muita gente vem perguntar ao padre o que vai acontecer, eu falo na requalificação. Não quero passar por mentiroso, por isso é que acho que é fundamental cumprir a palavra".
Está na hora de começar a celebrar a eucaristia, antes de se despedir o padre Paulo Vaz atira a última frase: "este bairro é agora da Boa Esperança, porque a esperança estava morta. Mas, através da fé, da participação e da responsabilidade de todos, mostrámos que é possível. Este é um milagre da fé mas também um milagre do homem". Não havia tempo para mais.
Cá fora já é noite. As conversas tornam-se menos audíveis por causa do ruído das dezenas de geradores que começaram a funcionar. O comércio continua activo; aqui a padaria, ali o clube de vídeo, além os bares e restaurantes. Nas ruas do Bairro da Boa Esperança vêem-se fogueiras onde crepita o churrasco. Em cada canto, um sistema de colunas debita funaná, morna e coladeiras. Ao longe, os habitantes de Sal Rei vêm em grupos para comer, beber e dançar.
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